segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Alcoolismo e suicídio

Especial – Rafael de Figueiredo / Frei Felipe
Publicado na Revista Delfos (ANO III – edição 4 – nº32)

Alcoolismo e suicídio


Na noite de minha alma, sentado na viela escura do desespero, contemplava atônito e de olhar vazio as parcas estrelas que cintilavam no céu. Mergulhado em angustiantes reflexões divisava os quadros de minha atual existência desfilar para minha observação.
Vi o dia primeiro em que infantilmente me permiti motivar por alguns amigos a fazer minha estréia nos alcoólicos. Oh, perdição de minha vida! Querendo parecer integrado ao meu grupo de companheiros, temendo sua reprovação, esquecia-me da educação familiar recebida e abusava da bebida. Encontrava no copo minha satisfação.
Em pouco tempo passei também a fumar escondido. No começo, para demonstrar o quanto era independente em minhas decisões, pelo menos era assim que acreditava; poucos meses depois estava fumando todos os dias. Por vezes abusava da maconha, mas do que gostava mesmo era de uma rodada em um bar.
Quando completei meus dezoito anos assumi perante minha família o hábito de fumar que até então escondia. Meus pais acreditavam que concedendo a mim o direito de fazer minhas próprias escolhas e, com isso tendo eu que arcar com as conseqüências das mesmas, aprenderia a ter responsabilidade por meus próprios atos. Como lamento que assim tenha sido, é certo que me revoltaria se me tentassem regular, mas como uma repreensão e um abrir de olhos me teria feito refletir.
Considerando-me adulto, consciente de minha conduta, abusava das festas e bebedeiras. Minha vida era regada a álcool e, sem maturidade, me regozijava disso. Em uma dessas noites, completamente alcoolizado, tive minha iniciação sexual por estímulo de acompanhantes mais experientes nas noitadas. Com vergonha, hoje admito que nem ao menos me recordo do rosto da mulher com quem tive relações. O que dizer de seu nome!
Desperto para a sexualidade, refém dos alcoólicos, fiz de minha vida um antro de perdição. Envolvia-me com tantas mulheres quantas conseguisse, mulheres como eu, reféns da sensualidade e dependentes dos mais diversos químicos.
Concluíra a muito custo a escola, precisava trabalhar, até porque queria dinheiro para gastar com liberdade. Meus pais reprovavam minha conduta, apesar de preferirem não a perceber. A cada dia me tornava mais necessitado do álcool. Reuniões sociais, festas... Somente saciava minha sede com bebidas que contivessem álcool. Acostumara-me antes a beber do que me alimentar.
Passei por rápidos empregos onde não conseguia me firmar e o dinheiro ganho escoava como água. Atrasava-me, faltava e perturbava sempre os ambientes onde pude encontrar trabalho. Meus pais me toleraram até o instante em que passei a agredi-los, primeiro verbalmente e em seguida extrapolando em agressões físicas. Não havia mais ambiente para mim naquela família. Fui despejado, pois me tornara insuportável e perigoso.
Recorri a amigos superficialmente disposto a diminuir meus maus hábitos. Encontrei outro emprego e dividia o aluguel de pequeno apartamento com mais dois jovens.
Certo dia eu encontrei uma linda moça pela qual me apaixonei. Seria ela o estímulo para minha transformação, alimentando em mim o desejo de mudança. Após alguns meses de romance nos encontrávamos envolvidos afetivamente. Meu desejo de beber era forte, mas sua presença a meu lado me estimulava a resistir. Encontrei grande alívio nos grupos de apoio a alcoólatras que passei a freqüentar.
Aproximadamente seis meses de namoro havia me feito um novo homem. Envergonhado e sem notícias da família, pois não havia encontrado coragem para revê-la, apoiava-me exclusivamente nessa que se fizera minha companheira dedicada.
Fortes complicações orgânicas de um momento para outro passaram a atormentar a saúde daquela que era minha sustentação. Ela definhava rapidamente, para meu total desespero. A vida parecia me cobrar pelos desvios do passado, colhia minha própria inconseqüência. Havia transmitido doença incurável a quem mais amava. Haveria de falecer rapidamente, carregando em seu ventre nosso filho com dois meses de desenvolvimento.
Minha vida havia acabado...
O retorno aos vícios foi imediato, afoguei minhas mágoas com mulheres desconhecidas e sempre alcoolizado. Passei a viver na rua, bebendo toda espécie de produtos que contivessem alcoólicos em sua composição.
Nada mais me importava...
Saindo de minhas reflexões, totalmente envolvido por interpretações errôneas das circunstâncias que a vida me apresentara, encaminhei-me decididamente ao fim de minha existência. Nesta mesma noite joguei-me ao chão em estrada movimentada. Desejava por fim a minhas aflições com o fim de minha vida.
Atordoado, despertei contemplando a escuridão. Não pude de imediato compreender o que me ocorria. Em profunda prostração, envolto em negra escuridão sentia-me sufocar em pequenino recinto. Angustiava-me a impossibilidade de movimentos, não divisava claridade alguma, não conseguia produzir qualquer ruído. Torturantes alfinetadas pareciam espetar todo meu corpo, produzindo a sensação de pequeninas mordidas.
Na abafada alcova onde permaneci por longo tempo a rememorar e refletir sobre meu tresloucado ato, pude divisar os caminhos tortuosos que abracei elegendo como verdadeiros.
Hoje sei que por misericórdia divina, pela intercessão de devotados amigos fui isentado de maiores aflições quando do momento de transição ao mundo dos espíritos. Por crer no nada após a morte do corpo, permaneci inconsciente da verdade que me envolvia até o momento em que despertei vinculado ao meu corpo desintegrado no sepulcro da indigência.
Morrera sem nome, desconhecido para o mundo terrestre. Recolhido na rua fui encaminhado a quadrante triste de um pobre cemitério, sem flores, sem lágrimas e sem amigos. Na despedida pude fechar meus olhos durante minha inumação para só então acordar meses depois, em completa desilusão.
Minhas dores não haviam desaparecido, minha angústia sequer havia me dado trégua. Dei cabo de minha vida por crer no nada, para esconder-me das dores que me assolavam, principalmente de minha própria consciência esmagada sob o peso do remorso. Se assim não fosse, se não houvesse o nada, quando tirei minha vida asilava minúscula esperança de reencontrar no além aquela em que aprendera a me apoiar.
Mas devido à avalanche de enganos que fizeram parte do script de minha existência última, acabei por deserdar das conseqüências merecidas dos atos que cultivei com minha conduta ainda encarnado. Quando solicitado pela vida a arcar com o que havia cultivado, neguei-me ao ressarcimento e, fugindo, encontrei o peso de minhas responsabilidades na continuidade da vida.
Muito chorei, muito sofri, pois em meu revoltado coração não compreendi tamanha desdita em tão curta existência. Acostumado a creditar ao próximo as aflições vividas custou-me compreender por que me achava ainda preso ao corpo pútrido que me servira de morada.
Da confusão mental passei a revolta, praguejando contra Deus. Fiz crescer minha aflição. Somente Deus sabe o que passei, por quanto tempo permaneci neste estado de inanição espiritual.
Finalmente, cansado e humilhado ante minhas próprias atitudes, vim a compreender que colhera até aquele dia em perfeita consonância com o que havia produzido. Provara até ali as conseqüências de minhas atitudes e pensamentos. Não havia a quem creditar culpa que não fosse a mim mesmo. Foi somente ao assumir total responsabilidade por minha conduta, envolto pelo desespero e cansaço extremos, que pude divisar mãos caridosas a me desvencilharem do funesto baú de minha agonia.
Novamente pouco vi, e o que vi não possuía capacidade para compreender. Após longos anos de sofrimento que a mim mesmo infligi, permitem que eu relate minha experiência para que seja proveitosa no esclarecimento, para que outros não necessitem passar pelo que passei.
Para minha maior tristeza, ainda não sou digno de rever a portadora do amor pelo qual erradamente tirei minha vida. Mas hoje sei que o único responsável sou eu, e que igualmente cabe a mim o trabalho de construir no mundo sobre os escombros que fiz surgir em meu próprio coração.
Não posso me despedir sem proferir o apelo aos jovens amantes dos gozos fáceis. Jamais deixem de pensar nas conseqüências de seus próprios atos. O retorno das mesmas pode tardar, mas nunca deixa de surgir. Acautelem-se antes para depois não se arrependerem amargamente como eu.

José

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