sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Suicídio

Incontestavelmente, há suicídios por monomania, realizados fora do império da razão, como aqueles, por exemplo, que ocorreram na loucura, na febre alta, na embriaguez; aqui a causa é puramente fisiológica; mas ao lado se encontra a categoria, muito mais numerosa, dos suicídios voluntários, realizados com premeditação e com pleno conhecimento de causa.
Certas pessoas pensam que o suicida jamais está completamente em seu bom senso; é um erro que partilhamos outrora, mas que caiu diante de uma observação mais atenta. É bastante racional, com efeito, pensar que, estando o instinto de conservação na natureza, a destruição voluntária deve ser contra a natureza, e que tal é a razão pela qual, freqüentemente, vê-se este instinto se impor, no último momento, sobre a vontade de morrer; de onde se conclui que, para realizar esse ato, é preciso não ter mais a cabeça em si. Sem dúvida, há muitos suicidas que são tomados nesse instante de uma espécie de vertigem e sucumbem num primeiro momento de exaltação; se o instinto de conservação o toma em último lugar, são como desembriagados e se prendem à vida; mas é bem evidente também que muitos se matam a sangue frio e com reflexão, e a prova disso está nas precauções calculadas que tomam, na ordem razoável que colocam seus negócios, o que não é o caráter da loucura.
Faremos notar, de passagem, um traço característico do suicídio, é que os atos dessa natureza, realizado em lugares completamente isolados e desabitados, são excessivamente raros; o homem perdido no deserto ou sobre o Oceano, morrerá de privações, mas não se suicidará, então mesmo que não espere nenhum socorro. Aquele que quer deixar voluntariamente a vida aproveita bem o momento em que está só para não ser detido em seu desígnio, mas o faz de preferência nos centros de população, onde seu corpo tem pelo menos alguma chance de ser encontrado. Tal se lançará do alto de um monumento no centro de uma cidade, que não o fará do alto de um rochedo à beira-mar, onde todo traço seu estará perdido; tal outro se dependurará nas árvores de Boulogne, e não irá fazê-lo numa floresta onde ninguém passe. O suicida quer muito não ser impedido, mas deseja que se saiba, cedo ou tarde, que se suicidou; parece-lhe que essa lembrança dos homens o liga ao mundo que quis deixar, tanto é verdade que a idéia do nada absoluto tem alguma coisa mais terrível do que a própria morte. Eis um curioso exemplo em apoio desta teoria.
Por volta de 1815, um rico Inglês, tendo ido visitar a famosa queda do Rhin, com ela ficou de tal modo entusiasmado, que voltou para a Inglaterra a fim de pôr em ordem seus negócios, depois retornou, alguns meses depois, para se precipitar no abismo. Incontestavelmente, é um ato de originalidade, mas duvidamos muito que tivesse feito o mesmo lançando-se no Niagara se ninguém devesse sabê-lo; uma singularidade de caráter causou o ato; mas o pensamento de que se iria falar dele determinou a escolha do lugar e do momento; se seu corpo não devesse ser encontrado, sua memória pelo menos não pereceria. Na falta de uma estatística oficial que daria a exata proporção dos diferentes motivos de suicídios, não seria de duvidar que os casos mais numerosos são determinados pelos reveses da fortuna, as decepções, os desgostos de toda natureza. O suicídio, neste caso, não é um ato de loucura, mas de desespero. Ao lado destes motivos, que se poderiam chamar sérios, os há evidentemente fúteis, sem falar do indefinível desgosto da vida, no meio dos prazeres, como o que acabamos de citar. O que é certo é que todos aqueles que se suicidam não recorrem a esse extremo senão porque, errados ou com razão, não estão contentes. Sem dúvida, não é dado a ninguém remediar esta causa primeira, mas o que é preciso deplorar é a facilidade com a qual os homens cedem, há algum tempo, a esse fatal arrastamento; aí está, sobretudo, o que deve chamar a atenção, e que, na nossa opinião, é perfeitamente remediável.
Não se lembra, freqüentemente de perguntar se há frouxidão ou coragem no suicídio; incontestavelmente, há frouxidão em falhar diante das provas da vida, mas há coragem em desafiar as dores e as angústias da morte; estes dois pontos nos parecem encerrar todo o problema do suicídio.
Por pungente que sejam os apertos da morte, o homem os afronta e os suporta se para isso estiver excitado pelo exemplo; é a história do conscrito que, só recuaria diante do fogo, ao passo que fica eletrizado ao ver os outros caminharem para ele sem medo. Ocorre o mesmo para o suicídio; a visão daqueles que se libertam por esse meio do tédio e dos desgostos da vida faz dizer que esse momento passa logo; aqueles que o temor do sofrimento teria retido, se dizem que uma vez que tanta gente faz assim, pode-se bem fazer como eles; que vale mais ainda sofrer alguns minutos do que sofrer durante anos. É nesse sentido somente que o suicídio é contagioso; o contágio não está nem nos fluidos nem nas atrações; ele está no exemplo que familiariza com a idéia da morte e com o emprego dos meios para que ela se dê; isto é tão verdadeiro que quando um suicídio ocorre de uma certa maneira, não éraro ver vários deles do mesmo gênero se sucederem. A história da famosa guarita, na qual catorze militares se dependuraram, sucessivamente, em pouco tempo, não teve outra causa. O meio estava ali sob os olhos; parecia cômodo, e por pouco que esses homens tivessem alguma leviandade de assim acabar com a vida, dele aproveitaram; a tua própria visão podia fazer nascer a idéia; o fato tendo sido contado a Napoléon, ordenou a queima da fatal guarita; o meio não estava mais sob os olhos e o mal se deteve.
A publicidade dada aos suicídios produz sobre as massas o efeito da guarita; ela excita, encoraja, familiariza com a idéia, provoca-a mesmo. Sob este aspecto, consideramos os relatos desse gênero, dos quais os jornais são pródigos, como uma das causas excitantes do suicídio: eles dão a coragem da morte. Ocorre o mesmo com aqueles dos crimes com ajuda dos quais se atiça a curiosidade pública; produzem, pelo exemplo, um verdadeiro contágio moral; jamais detiveram um criminoso, ao passo que para isso desenvolveram mais de um.
Examinemos agora o suicídio de um outro ponto de vista. Dizemos que, quaisquer que sejam os motivos particulares, tem sempre por causa um descontentamento; ora, aquele que está certo de não ser infeliz senão um dia e ser melhor os dias seguintes, facilmente tem paciência; não se desespera senão se não vê o fim de seus sofrimentos. O que é, pois, a vida humana com relação à eternidade, senão menos que um dia? Mas para aquele que não crê na eternidade, que crê que tudo acaba nele com a vida, e se é acabrunhado pelo desgosto e pelo infortúnio, não lhe vê o fim senão na morte; nada esperando, acha muito natural, muito lógico mesmo, abreviar seus sofrimentos pelo suicídio. A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as idéias materialistas, em uma palavra, são os maiores excitantes ao suicídio: elas dão a covardia moral. E quando se vêem homens de ciência se apoiarem sobre a autoridade de seu saber para se esforçarem em provar, aos seus ouvintes ou aos seus leitores, que não têm nada a esperar depois da morte, não é conduzi-los a esta conseqüência de que são infelizes, não têm nada de melhor a fazer do que se matarem? Que poderíamos lhes dizer para disso afastá-los? Que compensação poderiam lhes oferecer? Que esperanças podem lhes dar? Nenhuma outra coisa senão o nada; de onde é "preciso concluir que se o nada é o remédio heróico, a única perspectiva, vale mais nele cair logo em seguida do que mais tarde, e assim sofrer por menos tempo. A propagação das idéias materialistas é, pois, o veneno que inocula, num grande número o pensamento do suicídio, e aqueles que se fazem disso os apóstolos, seguramente, têm sobre si uma terrível responsabilidade.
A isso objetar-se-á, sem dúvida, que todos os suicidas não são materialistas, uma vez que há pessoas que se matam para irem mais depressa para o céu, e outras para se juntar mais cedo àqueles que amaram. Isto é verdade, mas incontestavelmente é o menor número, e do qual não se convenceria se se tivesse uma estatística conscienciosamente feita das causas íntimas de todos os suicídios. Seja como for, se as pessoas que cedem a este pensamento crêem na vida futura, é evidente que fazem dela uma idéia inteiramente falsa, e a maneira com a qual ela é apresentada, em geral, não é quase nada própria para dar-lhe uma idéia mais justa. O Espiritismo vem não somente confirmar a teoria da vida futura, mas a prova pelos fatos mais patentes que são possíveis ter: o testemunho daqueles mesmos que ali estão; faz mais, no-la mostra sob cores tão racionais, tão lógicas, que o raciocínio vem em apoio da fé. Não sendo mais permitida a dúvida, o aspecto da vida muda; sua importância diminui em razão da certeza, que se adquire, de um futuro mais próspero; para o crente, a vida se prolonga indefinidamente além do túmulo; daí a paciência e a resignação que afastam muito naturalmente do pensamento do suicídio; daí,em uma palavra, a coragem moral. O Espiritismo tem ainda, sob esse aspecto, um outro resultado igualmente positivo, e talvez mais determinante. A religião diz bem que se suicidar é um pecado mortal do qual se é punido; mas como? pelas chamas eternas nas quais não se crê mais. O Espiritismo nos mostra os próprios suicidas vindo dar conta de sua posição infeliz, mas com esta diferença de que as penas variam segundo as circunstâncias agravantes ou atenuantes, o que é mais conforme a justiça de Deus; que, em lugar de serem uniformes, elas são a conseqüência tão natural da causa que provocou a falta, que não se pode impedir de nelas ver uma soberana justiça eqüitativamente distribuída. Entre os suicidas, há os que cujo sofrimento, por não ser senão temporário em lugar de eterno, não é menos terrível e de natureza a dar a refletir a quem estivesse tentado a partir daqui antes da ordem de Deus. O Espírita tem, pois, por contrapeso ao pensamento do suicídio, vários motivos: a certeza de uma vida futura, na qual sabe que será tanto mais feliz quanto houver sido mais infeliz e mais resignado sobre a Terra; a certeza de que, abreviando a vida, chega justamente a um resultado diferente daquele que espera alcançar; que se livra de um mal para tê-lo um pior, mais longo e mais terrível, que não reverá, no outro mundo, os objetos de sua afeição, que queria ir reencontrar; de onde a conseqüência de que o suicídio está contra os seus próprios interesses.

Trechos extraídos do texto: Estatística do Suicídio.
KARDEC, Allan. Revista Espírita – 1862/Julho.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Aflições que criamos

Aflições que criamos

Vamos meditar sobre as aflições que criamos. Há muito tempo atrás dispúnhamos da candeia, da lamparina. Contemplávamos as noites maravilhosas com o brilho das estrelas, havia o luar. Hoje, com a eletricidade, temos as casas, as cidades iluminadas. Queremos uma luz feérica, mas, se porventura, a energia for interrompida – ainda que por alguns minutos – ficamos aflitos e nos voltamos contra a empresa fornecedora de eletricidade, contra todos os que consideramos responsáveis, criando aflição geral.
Antes, para nossas viagens, utilizávamos veículos de tração animal ou fazíamos longas caminhadas a pé em nossas visitas e piqueniques; hoje, temos nosso carro particular ou transporte coletivo confortável. Mas, se a velocidade máxima permitida for como é na maioria das estradas – 80km horários – ficamos desesperados por ter que observá-la, criando grande aflição.
Se estivermos numa fila aguardando a nossa vez, e uma senhora idosa, um doente ou uma gestante, for conduzido ao atendimento, por direito natural de antecipação a que faz jus, nos rebelamos, clamando com impaciência sobre nossos direitos, sem consideração alguma pelo nosso próximo, criando aflição entre os presentes.
Nos dias atuais a tecnologia avançou: temos possantes tratores para cultivar o solo, mas, se não pudermos comprá-los, clamamos com aflição, esquecidos de que podemos cultivar a terra com o arado de tração animal ou até com as mãos.
Agora dispomos de belíssimas geladeiras, mas se não pudermos adquiri-las, caímos na aflição: - Ah! Eu não posso comprar uma geladeira!
Antes conservávamos as verduras em bacias de água fresca e, com elas, preparávamos as saladas para as refeições.
Fala-se tanto no problema da fome, em nossos dias, que criamos vasta onda de aflições sobre a Terra. No entanto, morre muito mais gente por excesso de alimentação do que de fome, criando gordura no coração – e, em conseqüência, vêm os enfartes...
Esquecem-se as criaturas de que, muitas vezes, um pedaço de pão, guardado até por dias, pode satisfazer plenamente a fome; alguns pães podem alimentar toda uma família.
Busca-se hoje “status”. Eu nem sabia o significado dessa palavra; foi uma amiga que me explicou. Em se tratando de sapatos, desejamos 70 pares – ainda que não tenhamos 35 pares de pés, pois apenas usamos um par. Achamos pouco de 37 camisas.
Abrimos contas bancárias, fazemos depósitos na poupança para as crianças. Preocupamo-nos em saber qual banco cobra mais juros. É uma preocupação sem fim.
Queremos casas confortáveis, com muito luxo, onde haja lugar para tudo, menos para os velhos, porque não toleramos os doentes, os nervosos, nem temos tempo para eles. Assim é que os enviamos para clínicas de repouso ou hospitais geriátricos. Os velhinhos deveriam estar conosco, orando todos os dias pelas manhãs, recebendo nosso carinho.
Depois surgem os remorsos, o complexo de culpa, e não há psiquiatra na Terra capaz de nos atender. Quantas aflições nós criamos! Mas, desculpem-me pelo que estou falando, vocês me perdoem; esta assembléia, que me ouve, vai me perdoar. Eu estou na condição daquele palhaço que falou muito e pediu perdão, porque estava falando para si mesmo.

Discurso de Francisco Cândido Xavier, trechos extraídos do livro “Inesquecível Chico” – De Romeu Grisi e Gerson Sestini - editora GEEM.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Alcoolismo e suicídio

Especial – Rafael de Figueiredo / Frei Felipe
Publicado na Revista Delfos (ANO III – edição 4 – nº32)

Alcoolismo e suicídio


Na noite de minha alma, sentado na viela escura do desespero, contemplava atônito e de olhar vazio as parcas estrelas que cintilavam no céu. Mergulhado em angustiantes reflexões divisava os quadros de minha atual existência desfilar para minha observação.
Vi o dia primeiro em que infantilmente me permiti motivar por alguns amigos a fazer minha estréia nos alcoólicos. Oh, perdição de minha vida! Querendo parecer integrado ao meu grupo de companheiros, temendo sua reprovação, esquecia-me da educação familiar recebida e abusava da bebida. Encontrava no copo minha satisfação.
Em pouco tempo passei também a fumar escondido. No começo, para demonstrar o quanto era independente em minhas decisões, pelo menos era assim que acreditava; poucos meses depois estava fumando todos os dias. Por vezes abusava da maconha, mas do que gostava mesmo era de uma rodada em um bar.
Quando completei meus dezoito anos assumi perante minha família o hábito de fumar que até então escondia. Meus pais acreditavam que concedendo a mim o direito de fazer minhas próprias escolhas e, com isso tendo eu que arcar com as conseqüências das mesmas, aprenderia a ter responsabilidade por meus próprios atos. Como lamento que assim tenha sido, é certo que me revoltaria se me tentassem regular, mas como uma repreensão e um abrir de olhos me teria feito refletir.
Considerando-me adulto, consciente de minha conduta, abusava das festas e bebedeiras. Minha vida era regada a álcool e, sem maturidade, me regozijava disso. Em uma dessas noites, completamente alcoolizado, tive minha iniciação sexual por estímulo de acompanhantes mais experientes nas noitadas. Com vergonha, hoje admito que nem ao menos me recordo do rosto da mulher com quem tive relações. O que dizer de seu nome!
Desperto para a sexualidade, refém dos alcoólicos, fiz de minha vida um antro de perdição. Envolvia-me com tantas mulheres quantas conseguisse, mulheres como eu, reféns da sensualidade e dependentes dos mais diversos químicos.
Concluíra a muito custo a escola, precisava trabalhar, até porque queria dinheiro para gastar com liberdade. Meus pais reprovavam minha conduta, apesar de preferirem não a perceber. A cada dia me tornava mais necessitado do álcool. Reuniões sociais, festas... Somente saciava minha sede com bebidas que contivessem álcool. Acostumara-me antes a beber do que me alimentar.
Passei por rápidos empregos onde não conseguia me firmar e o dinheiro ganho escoava como água. Atrasava-me, faltava e perturbava sempre os ambientes onde pude encontrar trabalho. Meus pais me toleraram até o instante em que passei a agredi-los, primeiro verbalmente e em seguida extrapolando em agressões físicas. Não havia mais ambiente para mim naquela família. Fui despejado, pois me tornara insuportável e perigoso.
Recorri a amigos superficialmente disposto a diminuir meus maus hábitos. Encontrei outro emprego e dividia o aluguel de pequeno apartamento com mais dois jovens.
Certo dia eu encontrei uma linda moça pela qual me apaixonei. Seria ela o estímulo para minha transformação, alimentando em mim o desejo de mudança. Após alguns meses de romance nos encontrávamos envolvidos afetivamente. Meu desejo de beber era forte, mas sua presença a meu lado me estimulava a resistir. Encontrei grande alívio nos grupos de apoio a alcoólatras que passei a freqüentar.
Aproximadamente seis meses de namoro havia me feito um novo homem. Envergonhado e sem notícias da família, pois não havia encontrado coragem para revê-la, apoiava-me exclusivamente nessa que se fizera minha companheira dedicada.
Fortes complicações orgânicas de um momento para outro passaram a atormentar a saúde daquela que era minha sustentação. Ela definhava rapidamente, para meu total desespero. A vida parecia me cobrar pelos desvios do passado, colhia minha própria inconseqüência. Havia transmitido doença incurável a quem mais amava. Haveria de falecer rapidamente, carregando em seu ventre nosso filho com dois meses de desenvolvimento.
Minha vida havia acabado...
O retorno aos vícios foi imediato, afoguei minhas mágoas com mulheres desconhecidas e sempre alcoolizado. Passei a viver na rua, bebendo toda espécie de produtos que contivessem alcoólicos em sua composição.
Nada mais me importava...
Saindo de minhas reflexões, totalmente envolvido por interpretações errôneas das circunstâncias que a vida me apresentara, encaminhei-me decididamente ao fim de minha existência. Nesta mesma noite joguei-me ao chão em estrada movimentada. Desejava por fim a minhas aflições com o fim de minha vida.
Atordoado, despertei contemplando a escuridão. Não pude de imediato compreender o que me ocorria. Em profunda prostração, envolto em negra escuridão sentia-me sufocar em pequenino recinto. Angustiava-me a impossibilidade de movimentos, não divisava claridade alguma, não conseguia produzir qualquer ruído. Torturantes alfinetadas pareciam espetar todo meu corpo, produzindo a sensação de pequeninas mordidas.
Na abafada alcova onde permaneci por longo tempo a rememorar e refletir sobre meu tresloucado ato, pude divisar os caminhos tortuosos que abracei elegendo como verdadeiros.
Hoje sei que por misericórdia divina, pela intercessão de devotados amigos fui isentado de maiores aflições quando do momento de transição ao mundo dos espíritos. Por crer no nada após a morte do corpo, permaneci inconsciente da verdade que me envolvia até o momento em que despertei vinculado ao meu corpo desintegrado no sepulcro da indigência.
Morrera sem nome, desconhecido para o mundo terrestre. Recolhido na rua fui encaminhado a quadrante triste de um pobre cemitério, sem flores, sem lágrimas e sem amigos. Na despedida pude fechar meus olhos durante minha inumação para só então acordar meses depois, em completa desilusão.
Minhas dores não haviam desaparecido, minha angústia sequer havia me dado trégua. Dei cabo de minha vida por crer no nada, para esconder-me das dores que me assolavam, principalmente de minha própria consciência esmagada sob o peso do remorso. Se assim não fosse, se não houvesse o nada, quando tirei minha vida asilava minúscula esperança de reencontrar no além aquela em que aprendera a me apoiar.
Mas devido à avalanche de enganos que fizeram parte do script de minha existência última, acabei por deserdar das conseqüências merecidas dos atos que cultivei com minha conduta ainda encarnado. Quando solicitado pela vida a arcar com o que havia cultivado, neguei-me ao ressarcimento e, fugindo, encontrei o peso de minhas responsabilidades na continuidade da vida.
Muito chorei, muito sofri, pois em meu revoltado coração não compreendi tamanha desdita em tão curta existência. Acostumado a creditar ao próximo as aflições vividas custou-me compreender por que me achava ainda preso ao corpo pútrido que me servira de morada.
Da confusão mental passei a revolta, praguejando contra Deus. Fiz crescer minha aflição. Somente Deus sabe o que passei, por quanto tempo permaneci neste estado de inanição espiritual.
Finalmente, cansado e humilhado ante minhas próprias atitudes, vim a compreender que colhera até aquele dia em perfeita consonância com o que havia produzido. Provara até ali as conseqüências de minhas atitudes e pensamentos. Não havia a quem creditar culpa que não fosse a mim mesmo. Foi somente ao assumir total responsabilidade por minha conduta, envolto pelo desespero e cansaço extremos, que pude divisar mãos caridosas a me desvencilharem do funesto baú de minha agonia.
Novamente pouco vi, e o que vi não possuía capacidade para compreender. Após longos anos de sofrimento que a mim mesmo infligi, permitem que eu relate minha experiência para que seja proveitosa no esclarecimento, para que outros não necessitem passar pelo que passei.
Para minha maior tristeza, ainda não sou digno de rever a portadora do amor pelo qual erradamente tirei minha vida. Mas hoje sei que o único responsável sou eu, e que igualmente cabe a mim o trabalho de construir no mundo sobre os escombros que fiz surgir em meu próprio coração.
Não posso me despedir sem proferir o apelo aos jovens amantes dos gozos fáceis. Jamais deixem de pensar nas conseqüências de seus próprios atos. O retorno das mesmas pode tardar, mas nunca deixa de surgir. Acautelem-se antes para depois não se arrependerem amargamente como eu.

José

domingo, 11 de janeiro de 2009

Consequências da imortalidade

Especial – Rafael de Figueiredo / Frei Felipe
Publicado na Revista Delfos (ANO III – edição 3 – nº31)

Conseqüências da imortalidade

Por desconhecerem a continuidade da vida, suas conseqüências e seu desenrolar no além tumulo, diversos espíritos encarnados tiram suas próprias vidas no auge do desespero. Jogando-se de prédios, ingerindo venenos em grandes doses ou por graduais hábitos cotidianos de ingestão tóxica, de arma em punho ou com o nó a estrangular o pescoço partem ignorantes de sua imortalidade para a vida espiritual.
Quantos largariam à arma, desatariam o nó, desistiriam do pulo se conhecessem a vida que os recolherá na continuidade da existência, revelando cada disparate, cada tropeço que nossa consciência acuse.
A falta de preparo para o derradeiro encontro com a vida que aguarda a todos do outro lado da cortina da materialidade induz muitos companheiros ignorantes ao sofrimento. As escolas filosóficas e teológicas da Terra, enfocando detalhes e picuinhas a maior parte do tempo, esquecem de velar pela harmonia e paz de seus seguidores. Em termos de preparo para a vida espiritual, nos encontramos estagiando em jardim de infância, cegos e surdos para as constatações lógicas que a vida nos oportuniza.
Onde encontraríamos a bondade suprema e inquestionável de Deus se tivéssemos sido criados para sucumbir no nada? Onde avaliaríamos sua sabedoria se nos tivesse criado sem uma finalidade, por mero divertimento em momento de enfado? Se Deus é bondade e amor acima de qualquer apreciação porque sofreríamos tanto sem objetivo maior? Para sumir e ser consumido nas chamas do inferno?
Somente a imortalidade pode atestar a sublime benevolência e sabedoria de Deus. Espíritos imortais, dependentes de continuadas existências corporais para progredir, colhem o resultado de seus próprios erros, testemunham suas próprias conquistas morais e progridem incessantemente na busca pelas paisagens celestiais de bem-aventurança.
Como compreender os natimortos, os nascimentos em penúria, em berço de ouro, os bebês deficientes e os superdotados, se não for pelo argumento da multiplicidade das existências? Seríamos resultado aleatório das alterações de humor de Deus quando somos escolhidos para nascer deformados? Somente a repercussão de nossos próprios atos passados a nos alcançar nos dias atuais faria com que houvesse justiça em tais casos.
Imaginemos uma mãe, senhora bondosa que desencarnasse sendo imediatamente encaminhada para o céu, o paraíso da contemplação. Agora suponhamos que seu filho, um meliante de alta periculosidade, perdesse sua vida em tiroteio com a polícia e instantaneamente fosse encaminhado para o inferno. Aquela mãe, sinônimo de bondade, permaneceria tranqüila no seu paraíso? Teria ela que perdoar seu próprio filho; afinal ela era exemplo de benevolência. Aquele lar de tranqüilidade continuaria sendo um paraíso para aquela mãe intranqüila? Se uma mãe exemplo de bondade perdoaria seu filho, pois seu coração assim pediria, será que Deus, que é a representação máxima de infinita bondade não nos perdoaria, condenando-nos ao eterno sofrimento do inferno?
Recebemos de Deus nova oportunidade e, por meio da reencarnação, temos a chance de refazer nosso caminho demonstrando estarmos dispostos à mudança. E recebemos esta mesma chance inúmeras vezes, dependendo de nós o quanto avançarmos no caminho do bem.
Não “perdemos” um minuto sequer para escutar os sussurros que a vida nos endereça em nossa ânsia de encontrar esclarecimento perante as aflições. Deixamos todas as reflexões sadias para a hora da morte, de regresso à pátria espiritual, e então lamentamos não termos pensado nisso antes, pois poderia ter sido tudo muito diferente.
Sendo Deus todo perfeição, como imaginar uma vida sem sentido, leis sem harmonia, oportunidades sem méritos, dores sem necessidades, conseqüências sem causa?
Constatamos que quando morrermos para a matéria densa, continuamos sendo os mesmos na vida espiritual; somos espíritos que mantemos nossa personalidade, nossas conquistas morais e intelectuais. O desenvolver de nossa capacidade de compreensão da vida faz com que aprendamos a valorizar o que realmente tem importância.
Aprendemos a valorizar os bens espirituais, aqueles que passam a fazer parte de nosso patrimônio íntimo, aqueles que nos servem de passaporte para ingressarmos em mundos mais felizes. Tornamo-nos mais equilibrados, mais tolerantes e compreensivos diante das dificuldades proveitosas de nossa vida material. Pois possuir é sempre frustrante. Na medida em que alcançamos o alvo de nosso desejo, ele deixa de ter o mesmo valor e sentimos necessidade de possuir outro objeto de valor transitório.
Não conhecendo a pré-existência do espírito e sua sobrevivência após a morte orgânica, muitos são aqueles que morrem para a vida ainda a habitar o corpo. Entregam-se a doença, desistem do esforço enobrecedor, na madureza da idade abandonam novos empreendimentos por imaginarem que tudo se perderá com o fim próximo.
Pascal resume muito bem este pensamento na seguinte frase: “Para que ser mais, se, dentro em breve, deixarei de ser totalmente?”.
Compreendermos a continuidade da vida é nos encher de esperança quando envoltos na aflição, pois por pior que seja a noite sempre haverá um novo dia. É permitir que a fé no futuro nos alimente a resignação para enfrentar a dor e o desespero. É poder apostar no amanhã, no futuro, se as coisas não vão bem no presente. É saber que lutar incansavelmente sempre faz a diferença.
Se Jesus nos deixou dito que todos os fios de nossas cabeças estão contados, como supor que algo que fizéssemos no início ou no final de nossa existência corporal não teria significado? Pela continuidade da vida compreendemos o valor do último suspiro, do arrependimento que altera disposições íntimas no moribundo no último instante. Entendemos que as pessoas que na velhice iniciam nobres projetos, sabedores que não conseguirão concluí-los, são aquelas que sentem na intimidade que o que fizerem será contado, pois a vida não finda, somente muda de paisagem, deixando seu legado como estímulo e oportunidade na continuidade dos que permanecem ainda encarnados.
Precisamos nos convencer que o paraíso está dentro de nós, e de que a tranqüilidade que tanto almejamos deverá ser construída por nós mesmos, gradualmente. Por não entendermos isso, comumente desejamos a eternidade quando estamos de passagem pela Terra, mas quando aportamos na espiritualidade pedimos para retornar para refazer determinado trajeto vestindo novamente o corpo grosseiro. Deus não se faz juiz de nossos atos. Suas leis sábias regulam nosso caminhar e pelos achaques produzidos por nossas próprias atuações aprendemos a conhecer a opção correta a tomar. Ao despertar, nossa consciência aponta os erros cometidos e nosso senso de dever nos impele ao ressarcimento. Como todos evoluímos incessantemente, temos nossas concepções quanto ao certo e errado mudando constantemente. Mesmo os espíritos mais arraigados ao mal evoluem e descortinam igualmente novos horizontes pela ação da própria consciência que os impele a evoluir.
Sob a benção do esquecimento renascemos quantas tantas forem às vezes necessárias para nosso progresso. Sem a aflição da consciência culpada, regressamos para contornar gradualmente os problemas do passado. A justiça divina manifesta-se nas situações que, por falta de compreensão, chamamos de injustiça.
Somente esclarecimentos não libertam ninguém; se estes conceitos não forem motivadores de transformações verdadeiras, de nada valem, a não ser agravar a consciência culpada por conhecer e nada fazer.
“Há muitas moradas na casa de meu Pai.” Conheçamos os conceitos esclarecedores e aproveitemos a oportunidade que o presente nos disponibiliza. Por que esperar a constatação dos erros cometidos para somente então em novo corpo iniciar a mudança? Mudemo-nos todos os dias, nos renovemos em Cristo, fazendo do hoje o melhor lugar para estarmos construindo desde já um amanhã de esperanças.

São Leopoldo, 10 de março de 2005.
Lúcia