quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

UM RELATO INESPERADO

De início, sem nenhuma ideia pré-concebida fui assaltado por um ambiente diferente que se mostrava persistente, com sons, cores e fortes impressões emocionais. As balas de canhão singravam os ares caindo sobre as rústicas construções de madeira, não sei onde estava, nem que ano era aquele, mas me parece que soldados atacavam uma pequena fortificação em ambiente descampado. Certamente estamos entre os séculos XVI e XVII, pois as armas e roupas eram facilmente identificáveis.

Vamos ao relato:

Quem eram aquelas pessoas que lançavam suas armas sobre nós. Fomos pegos de surpresa, levantei-me ainda atordoado. E foi por pouco, pois bastou ultrapassar o umbral da porta de nosso alojamento e tudo desmoronou com o peso da pesada bala de canhão que caia dos céus. Sem camisa, ainda tentando prender a espada a cintura corri para o pátio procurando compreender o que acontecia. Vi os homens correndo atordoados assim como eu, sem saber o que estava acontecendo. Alguns gritavam:

- Estamos sob ataque, as armas, as armas!!!

Logo as primeiras fumaças surgiam, e nossos alojamentos incendiavam rapidamente. O que acontecia? Quem nós atacava? Não tínhamos a menor ideia. Fora um fim inevitável, não havia como revidar. Pegos de surpresa caímos sem capacidade de responder ao ataque. Os sobreviventes foram facilmente feito prisioneiros. Alguns executados, outros que poderiam ser uteis serviam de guia e permaneciam vivos enquanto mantivessem a utilidade. Os nativos estavam com eles. Raça vil, diziam os homens, pois mudavam de lado, e faziam alianças com muitos ao mesmo tempo, tudo dependia da situação mais vantajosa. A ilusão do conquistador, nós que ali estávamos como invasores não éramos tão vis como esses nativos? Não havíamos os enganado e abusado para receber vantagens igualmente?

Isso não importava mais, estava tudo acabado, ao menos para mim. Meus anos de serviço militar a coroa havia felizmente terminado. Estava cansado de viver entre selvagens e mosquitos, sem o menor conforto. Isso não era a vida de aventuras e triunfos que nos haviam prometido. Ah... juventude e suas ilusões, como somos facilmente convencidos a assumir posições que mais tarde se mostram desfavoráveis.

Minha situação depois daquele ataque? Não sei muito bem o que se passou, estive de volta a Europa, revi minha cidade, mas completamente transformada, irreconhecível na verdade. Não foi fácil. Acreditei ter enlouquecido, talvez houvesse contraído alguma doença naquele mundo primitivo. Não fora homem letrado, mal sabia ler e escrever, o que por pouco que fosse me permitiu tomar posição de oficial de pequena patente no exercito de sua majestade.

Estive vagando, em outras terras, com outras formas, fui soldado, fui mendigo, tudo se confunde em minhas lembranças. Não sei exatamente porque me trazem até aqui, qual a intenção de me fazer falar dessa maneira. Recordações que me pareciam perdidas para sempre ressurgem e me atormentam, processo desagradável e inoportuno. Não quero lembrar, não quero saber sobre meu passado. Deixe-me esquecer! Deixe-me esquecer! Que tormenta se abate sobre o homem que não o permite esconder de si mesmo os resquícios negros que guarda e carrega em sua própria alma.

Minha cabeça dói, não a dor física de um pequeno mal, nem tão pouco a dor passageira de uma pancada fatal, dói pelo tormento do passado que ressurge afrontando minha tranquilidade, me perturbando sem paz. Eu que imaginava que todos os meus atos reprováveis haviam sido esquecidos juntamente com minha memória confusa.

Vejo que não, vejo que tudo ressurge, e lamento profundamente o dia que aqui pus meus pés. Neste solo ignoto, terra de minha perdição, que somente mal fez eclodir de minha alma. Que importa os infortúnios de selvagens? Que importa as mortes e abusos? Diziam que estes seres primitivos não tinham almas, haviam sido concebidos por Deus para servir o homem civilizado. Haviam nos garantido isso, era a opinião da Igreja! Não podem me inculpar se errei sob a tutela dos padres.

Esses vermes de batina. Classe de covardes hipócritas. Valiam-se de sua influência moral para enredar os ignorantes em suas armadilhas. Não eram melhores do que os soldados, mais mal do que nós faziam eles com suas tramas ardis.

O que mais querem que eu fale? Deixem-me em paz com minha insignificância! Já não pago o suficiente com minha indigência pelas ruas? Querem também minha alma, pois de mim já retiraram o orgulho e a mínima condição de subsistir. Quem são vocês monstros mascarados? Justiceiros dos infernos que vieram atormentar minha alma? Deixem-me em paz, deixem-me em paz!!!!

O espírito caiu em lágrimas. Não estava arrependido de nada. Enrodilhado em uma complexa trama de vários séculos, precisava trazer a tona alguns episódios do passado para dar prosseguimento ao seu processo de amadurecimento íntimo. Estamos ante um quadro comum na história do Brasil colonial, onde as monarquias europeias aqui disputavam as riquezas, explorando com amplo apoio da Igreja a vida nativa, usufruindo da vida do índio e, posteriormente, de negros africanos. Entretanto, não se faz aqui o julgamento de caso, pois não há inocentes nem culpados, se esses vários espíritos continuam vinculados a essa fantástica trama é porque encontraram motivações particulares para assim fazer. É o quadro típico da vingança que se arrasta por gerações, onde a vítima de um dia vira algoz no dia seguinte. O que fazer com esses irmãos? Rezar e esperar que o tempo cumpra sua missão. Haverá um dia em que recobrarão os sentidos e poderão ver a vida sem as amarras do egoísmo, e somente então estarão prontos para recordar o passado e amadurecer com o esforço para construir o próprio amadurecimento moral.

25/12/2013

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