terça-feira, 4 de maio de 2010

O DRAMA DE UM ESPÍRITO: O RELATO DE UM SOLDADO RUSSO.

Publicado na Revista Delfos (abril/2010)

O Relato de Igor

Em atividades de intercâmbio mediúnico no Grupo de Estudos Espírita Irmão Áulus passei a vislumbrar rápidos “flashes” visuais. A primeira imagem foi um casal de jovens se despedindo na plataforma de uma estação ferroviária, comum acontecer que essas imagens tragam algum fragmento de sua história. Logo em seguida vi essa mesma jovem encolhida em um abrigo, onde acabou desencarnando soterrada junto de outra senhora. Em seguida percebi a situação do comunicante que me envolvia naquele instante, era um jovem alto, de uniforme militar pesado, que associei com vestimentas russas da segunda grande guerra mundial. Trazia no peito as marcas das balas que lhe ceifou a existência corporal.

Como as imagens eram desconexas levei certo tempo até conseguir compreender parcialmente do que se tratava. Era um espírito agitado que desejava relatar sua história. Queria que eu a contasse porque encontrou em mim essa possibilidade. Entretanto, me ficou bastante claro que não deveria aceitar escrever com o primeiro espírito que aparecesse. Narrar sua versão demandaria tempo e deveria me concentrar nas atividades que me filiava com supervisão dos amigos espirituais que me assessoram.

Esse soldado russo me forneceu seu nome, o nome de sua noiva, o local de onde vieram e os principais fatos que haviam se dado e que eu vislumbrara por imagens fugidias. Era como se me fornecessem um pacote de informações que iriam se organizando na medida em que fornecia tempo e tranqüilidade para que as peças se encaixassem. Igor, era como se dizia chamar, era bastante impositivo, insistia em relatar sua versão. Pude compreender que o teor de seu relato não traria uma mensagem bem composta no sentido de ser construtiva ao leitor. Na realidade ele reencontrara sua Elisa reencarnada e a assediava espiritualmente, dizia-se injustiçado por ter seus sonhos de amor roubados por Deus. Deduzi de início que não deveria atender a sua solicitação.

Duas noites mais tarde, enquanto dormia, sonhei com outra versão da história de Igor. Que trazia os mesmos personagens em uma existência anterior. Percebi que novamente ele desejava escrever e lhe informei que teria sua chance no devido momento e se houvesse anuência dos instrutores espirituais. Naquele momento comecei a compreender que haveria um aprendizado oportuno por detrás desse contato mediúnico. Senti que na atividade íntima de intercâmbio mediúnico, onde me coloco a disposição para escritos espontâneos, a situação teria seu desdobramento.

Igor estava presente, mas não pôde narrar o relato que desejava. Os orientadores espirituais o induziram a narrar eventos anteriores que ele desejava omitir. A partir de agora vou deixar-lhes com os desdobramentos dessa atividade curiosa:

Primeira parte do relato de Igor

Tudo começou na guerra da Criméia, havia estado fora por muito tempo, notícias desinformadas davam conta de que eu havia perecido em combate. Elisa desesperou-se, éramos muito jovens ainda. Porém, tudo não passara de tremendo equívoco. Estivera acamado por meses entre vida e a morte, mas minha juventude e o amor por Elisa me sustentaram.

Qual não foi minha dor ao ver Elisa com outro. Soube antes de retornar ao lar que havia ela contraído núpcias crendo-me perdido em definitivo. Achei por bem que não deveria importuná-la e optei por antes de qualquer apresentação conferir a veracidade do que houvera escutado.

Apesar de abatido estava disposto a aceitar a situação. O destino parecia conspirar contra nossa união. Quase enlouqueci de raiva quando descobri que ela houvera desposado um colega de farda, justo um amigo que sabia que eu estava ainda vivo. Procurei compreender o que poderia ter ocorrido para ocasionar essa situação, mas a idéia de uma traição tornava-se cada vez mais recorrente em meus pensamentos. Minha íra fugiu ao controle quando soube que fora justamente esse amigo que trouxera a notificação de meu passamento.

Sem refletir decidi dar cabo de sua existência. Queria minha vingança. A guerra não havia terminado e breve ele, assim como eu, deveríamos retornar ao fronte de batalha. Tentava imaginar como seria sua reação ao encontrar-me vivo em algum acampamento de campanha. Teria a dignidade de revelar-me seu ato de traição? Não sabia, porém estava pouco disposto a ouvir-lhe as desculpas. A idéia de que ele quisesse dar fim a minha vida sabendo-me ainda vivo passou a torturar-me. Nessa circunstância deveria agir o quanto antes e retomar o lugar que era meu por direito junto a Elisa.

Em noite funesta para minha alma adicionei um frasco inteiro de veneno ao cantil do traidor. Sem que soubesse que eu ainda estava vivo aguardei escondido para saber se o plano teria êxito. Ao redor de pequena fogueira alguns soldados conversavam banalidades enquanto embebedavam-se.

Profunda agonia assaltou-me quando percebi que todos os soldados ali presentes iriam dividir o mesmo líquido. Cogitei de me expor, confessar meu desatino e desistir da desforra. Só que as imagens de um traidor desfrutando do lugar que por direito deveria ser meu inflamava minha cólera. Ele merecia morrer. E os demais? Deveria sacrificar todos por minha vingança? Entre cogitações não percebi que já era tarde e que o veneno havia sido ingerido.

Atônito, deixei o arbusto de onde tudo vira para me aproximar. Ainda lembro da máscara da agonia que aqueles homens vestiam, seus estertores e olhos esbugalhados, expressando desespero intenso, sem saber o que lhes acontecia. Caíram todos juntos ao solo a espumar pela boca. Ceifara seis vidas, seis jovens que como eu deveria ter seus sonhos e que talvez possuíssem alguém que os esperasse o retorno.

Insano e sem poder fugir a imagem dos mortos em agonia atiçando meu remorso acabei por expor-me propositalmente a risco maior que o necessário, vindo a sucumbir no campo de batalhas engasgado em meu próprio sangue.

Palavras do orientador espiritual

Essa narrativa não fora cedida espontaneamente, a retiramos das lembranças de um desencarnado que atribuía sua desdita amorosa ao destino, praguejando contra Deus. Encontrando a jovem que lhe fora alvo de sua fixação apaixonada novamente reencarnada procurou junto dela se fixar. Passando assim a perturbar-lhe. Em tudo alegava ele os direitos que possuía, direito ao amor que lhe fora retirado bruscamente em sua última existência.

Existência que desejava narrar obstinadamente para demonstrar o quanto havia sido infelicitado pelo destino. Encontrando a possibilidade de escrever através da mediunidade almejava declarar aos quatro cantos toda a injustiça de que se dizia vítima. Com o objetivo de instrução foi permitido que ele desse sua versão dos fatos, o que aconteceu através de imagens desconexas.

Entretanto, não poderíamos deixar que ele agisse livremente em seus propósitos, por isso, revelamos o que escondia sua consciência. Demonstrando onde seu destino fora traçado, através da recordação dos atos que cometera em existência anterior. Agora ele terá a possibilidade de relatar o que desejava, sua abordagem se modificará substancialmente, pois conhecemos o triste episódio anterior que desaguou na existência que narrará. E não seremos colhidos de surpresa, sabendo de antemão que somos responsáveis por todos os nossos atos e deles prestaremos a devida conta.

Segunda parte do relato

Ao contrário dos primeiros contatos, Igor se mostrou arredio, insatisfeito e bastante confuso. Foi possível compreender que a confissão de seus desatinos anteriores causou nele forte impressão. Não mais desejava escrever, sequer desejava estar presente, porém a angústia deixava claro que havia algo diferente, talvez estivesse sendo abordado pelo sentimento de culpa.

Cabe a cada um de nós aproveitarmos a lição espontânea e rogar pela melhora dos personagens envolvidos nos relatos. Também por isso ao iniciarmos a atividade da noite acabamos aleatoriamente lendo uma mensagem quanto ao perdão aos criminosos. Fica o questionamento, podemos julgar se todos trazemos máculas em nosso passado?

O relato de Igor

Se antes desejava me utilizar da palavra para externar minha revolta, hoje, acanhado é que me valho da escrita para narrar o que vivi. A realidade é que não mais desejava aqui retornar, porém, vontade superior a minha assim me induz fazendo com que termine o que comecei.

Ainda lembro, como se fosse hoje, do dia em que os belos olhos claros de Elisa encontraram nos meus o calor de uma admiração apaixonada pela última vez. Foi na fatídica manhã em que a deixei na estação ferroviária, ela iria estudar em Paris. Quisera eu poder ter adivinhado que a guerra estouraria logo depois, dificultando qualquer contato.

A notícia de que a França havia sido invadida me causava intenso temor. As narrativas das crueldades cometidas pelas tropas alemãs me desesperavam. E eu sem notícia alguma. Passei a temer pela vida de Elisa.

Quando tomamos parte na luta armada, não hesitei, fui dos primeiros a me apresentar, na ânsia de alcançar Paris e saber notícias do paradeiro de Elisa. Sem sair dos meus pensamentos o tempo foi passando, a guerra, diziam, estava perto do fim. Estávamos próximos de invadir Berlim. Entretanto, muito tempo passara sem que notícia alguma obtivesse. Foi na Alemanha que tombei, com meu peito varado por balas. Não mais encontrei quem buscava, entretanto, minha busca não terminou. Segui procurando, até reencontrá-la mudada, vivendo no Brasil.

Conclusão do orientador espiritual

Elisa havia perecido no desabamento de um prédio bombardeado quando do princípio da guerra. Sequer se encontrava em Paris. Desencarnara soterrada e logo dera continuidade a sua existência espiritual. Em melhores condições de entendimento compreendera a inutilidade de buscar Igor, evitando assim criar uma vinculação de angústia e aflições.

Muito em breve ela o receberá como filho, buscando sublimar o vínculo que os relaciona. Na figura de mãe dedicada acabará por conquistar o respeito e a admiração de Igor. A complexidade dos sentimentos em que nos envolvemos acaba por nos colocar sem condições de discernimento. A confissão dos erros do passado, mesmo que sem a espontaneidade que se desejaria, permitirá uma trégua nas relações conturbadas e intensas desses dois espíritos. Ofertando uma perspectiva melhor para o futuro.

 

Rafael de Figueiredo

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